Um oásis em meio à seca
21 de novembro de 2016Quando o ônibus escolar encosta às 6h30 para pegar os primeiros estudantes na zona rural de Cocal dos Alves, Piauí, Vanessa está pronta para embarcar. Antes de chegar ali, ela já percorreu quatro quilômetros de estrada de terra de moto, sozinha, aos 17 anos.
Malha Grande, o povoado de seis casas onde mora, é o mais distante da única escola de ensino médio na região, e o ônibus não chega até lá. "Tenho que fazer isso, eu quero estudar", diz Vanessa, cujo pai, agricultor, não sabe ler nem escrever.
Dali, o percurso até o destino é de 15 quilômetros. Aos poucos, o ônibus fica cheio de estudantes, uniformizados e concentrados para as provas de Português, Inglês e Espanhol, que acontecem às segundas-feiras.
A avaliação semanal é uma das estratégias que a escola estadual Augustinho Brandão encontrou para se manter no topo – seus alunos são recordistas em medalhas nas Olimpíadas Brasileiras de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) e um dos melhores no Enem, Exame Nacional do Ensino Médio.
A trajetória de sucesso nasceu com a própria Obmep, em 2005. Naquele ano, Antônio Amaral, o jovem professor de matemática, leu por acaso sobre a competição na internet, que acabara de chegar ao município na versão discada e lenta. Era a chance de testar se o "experimento" que haviam iniciado dois anos antes estava no caminho certo.
"Eu fazia parte do grupo de professores que inauguraram, em 2003, a Augustinho Brandão, a primeira e única escola de ensino médio em Cocal dos Alves. Não tínhamos referência, a gente só queria ensinar", relembra Amaral.
O resultado foi surpreendente: dos 25 alunos inscritos nas olimpíadas naquela primeira edição, 17 ganharam medalhas.
Sem cadeiras para todos
A atual diretora da escola, Aurilene Vieira, estava lá desde o começo. Em 2003, as salas de aula ocuparam dois cômodos de uma construção antiga, um posto de saúde abandonado e a cantina. Não havia espaço para todos os alunos, que se sentavam no chão, nas janelas, ou dividiam as cadeiras.
A maior parte dos fundadores da Augustinho Brandão, moradores da cidade, tinha apenas o ensino médio. Quando, no início do milênio, a Universidade Federal do Piauí abriu cursos de graduação que poderiam ser feitos nas férias, Aurilene e Amaral agarraram a chance.
"Tínhamos 20 e poucos anos, os nossos alunos eram da nossa idade. Não tínhamos muita noção do que estávamos fazendo. Só queríamos que os jovens daqui continuassem os estudos", conta Aurilene. A maioria desistia na quarta série ou se mudava para o "sul", como o Rio de Janeiro é chamado entre os locais. Lá, só conseguiam trabalho na construção civil.
Depois das primeiras medalhas na Obmep, Aurilene, então professora de História, convenceu a turma a passar por outra prova de fogo: o vestibular. "Ninguém na cidade acreditou. Alguém falar que filho de pobre podia fazer faculdade era surreal", conta.
Os professores fizeram vaquinha e conseguiram levar os alunos para fazer a prova na cidade vizinha, Parnaíba, a 100 km de Cocal dos Alves. Quando o resultado saiu, outro alarde: 70% de aprovação.
Ajuda em tempos difíceis
Atualmente, a Augustinho Brandão ocupa um terreno amplo, com carteiras para todos os alunos em salas equipadas com ar condicionado – a temperatura média na cidade ultrapassa os 30° C.
O bom desempenho levou o governo federal a financiar a infraestrutura. A escola tem 275 alunos, a maior parte em regime integral. Também há ensino médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período da noite.
Ganhar medalha em olimpíadas virou algo corriqueiro: além da Obmep, outras competições de matemática, informática, astronomia, robótica, lançamento de foguete e língua portuguesa rendem premiação anualmente.
Para a diretora, as competições servem para medir a qualidade do ensino, mas não é o foco da escola. "Queremos mudar a realidade dos nossos alunos", afirma, pontuando que quase 100% dos estudantes recebem Bolsa Família.
O programa social é praticamente a única fonte de renda dos pais, agricultores familiares, que não colhem mais nada no campo há cinco anos, quando a atual seca começou.
Como tudo deu certo
Na visão da diretora, os bons resultados da escola podem ser explicados pela dedicação dos professores. Segundo os alunos, eles são grandes incentivadores, mesmo quando o apoio para estudar não é forte em casa.
Ana Beatriz Benigno Rocha, 15 anos, se surpreendeu com a atenção que recebe. Depois de perder o emprego em São Paulo no começo do ano, o pai dela decidiu se mudar para Cocal dos Alves para que os filhos estudassem na Augustinho Brandão. "A escola aqui é mais puxada, mas os professores nos ajudam muito mesmo", diz Ana.
Na tentativa de explicar o sucesso da escola, o professor Amaral acredita que há algo de especial no município, que muitos de seus colegas não encontram em outras partes. "Temos o respeito dos alunos, dos moradores. E nos preocupamos em ensinar o que está previsto, seguir o conteúdo rigorosamente, nos sentimos responsabilizados", diz sobre a escola de Cocal dos Alves, cidade de 6 mil habitantes e baixo Índice de Desenvolvimento Humano.
"De alguma forma, conseguimos colocar na cabeça dos nossos alunos que estudar é o único caminho", resume Amaral. É a trilha que Vanessa, aluna do 2° ano do ensino médio, quer seguir. "Quero fazer biologia. Sei que vou conseguir", conta, antes de subir de volta na moto e retornar para casa ao fim do dia de estudo.