UPP falhou ao não evoluir no diálogo com comunidade, diz especialista
23 de abril de 2014Ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro viraram uma praça de guerra na noite de terça-feira (22/04), após o corpo do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, de 25 anos, ter sido encontrado numa escola municipal na favela Pavão-Pavãozinho. Houve tumulto, confronto com policiais e troca de tiros, numa confusão que chegou às ruas de Copacabana.
Moradores da comunidade acusam policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de terem espancado Douglas até a morte e colocaram, mais uma vez, em questão o programa. Outro caso de grande repercussão na mídia foi o do pedreiro Amarildo, que desapareceu após ser abordado por policiais militares da UPP da Rocinha.
Em entrevista à DW, o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz que existem várias acusações de abuso de poder e mortes de moradores das favelas pacificadas e questiona o caminho que o programa está seguindo: "O projeto ficou no piloto automático nos últimos anos."
DW– Entre os prováveis casos envolvendo policiais das UPPs está o desaparecimento do pedreiro Amarildo e, agora, a morte do dançarino Douglas Pereira. Quais são as principais críticas em relação às UPPs?
Ignacio Cano – Não acreditamos que os policiais das UPPs sejam piores que os outros profissionais. Inclusive achamos que a conduta deles é melhor. Mas nas áreas das UPPs há maior visibilidade, e as pessoas estão mais conscientes de sua capacidade de denunciar. E nós, que fazemos parte do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos do Estado do Rio, ainda recebemos muitas acusações.
Casos como o do pedreiro Amarildo repercutem na imprensa, mas por trás deles há muitas outras acusações. Inclusive, por exemplo, na área de Manguinhos, que ultimamente já experimentou muitos ataques contra as UPPs, nós recebemos denúncias desde o ano passado sobre abusos e, inclusive, sobre mortes cometidas por policiais.
Fora das UPPs, existe um número de casos muito maior. Mas se compararmos com a situação anterior ou com a situação fora das UPPs, o balanço é positivo. Mas se compararmos com a expectativa que foi criada, evidentemente, há ainda muitos problemas nas áreas das UPPs.
Quais são os principais problemas?
Uma das áreas mais deficitárias hoje em dia é a relação entre a comunidade e os policiais. Tudo continua dependendo da vontade e da inclinação do comandante local. Não houve um esforço de institucionalizar essa relação. E essa determinação de tentar evoluir no sentido de uma polícia mais comunitária é essencial para mudar o quadro de segurança. A UPP ficou no estágio inicial: ocupou territórios, foram colocados policiais lá, mas não se avançou suficientemente na mudança das relações e no diálogo entre a polícia e a comunidade.
Em sua opinião, houve uma expansão exagerada de UPPs sem um planejamento correto?
O problema não é a expansão, mas justamente os critérios de seleção das comunidades nas quais a UPP foi implantada. Nós argumentamos com o governo que o nível local de violência deveria ser um dos critérios centrais, e infelizmente não foi. O critério utilizado foi na verdade pertencer a determinadas regiões que eles queriam pacificar e não o nível local de violência.
Mas, mesmo com os problemas identificados, a expansão continuou devido à pressão gerada por eventos internacionais como Copa do Mundo e Olimpíadas?
Eu acredito que o projeto ficou no piloto automático nos últimos anos. Ele tem um impacto bastante positivo, teve uma acolhida excessivamente calorosa, porque foi recebido como a solução final dos problemas de segurança do Rio de Janeiro. E, de forma evidente, isso é somente um passo.
Assim, os problemas começaram a acontecer. E a questão das UPPs vai além dos grandes eventos, vai no sentido de um projeto de cidade que esse governo tem de, por um lado, tornar o Rio de Janeiro um centro internacional de turismo e, por outro, de negócios e comércio. E para esse projeto de cidade é importante o que acontece em determinadas áreas, como na Zona Sul, nas partes turísticas, no Centro e nas principais vias de comunicação. Já o que ocorre na Zona Oeste e na Baixada Fluminense é praticamente irrelevante. E a UPP seguiu exatamente este projeto de cidade e esqueceu justamente das áreas mais violentas. Então precisamos de um projeto de cidade não apenas para a Zona Sul e Centro, mas para o conjunto da área metropolitana que priorize justamente os lugares mais violentos.
Falta também treinamento aos policiais e melhores condições de trabalho?
Sem dúvida nenhuma. O treinamento continua bastante deficiente. Houve algumas tentativas de modificação, mas o treinamento para a UPP tem duração, no máximo, de uma ou duas semanas. Como é que se desfaz um modelo histórico treinando uma ou duas semanas? E as condições para os policiais são muito precárias: em muitas comunidades eles ainda estão em contêineres, com condições muito ruins. O trabalho nas UPPs é mais duro do que o realizado em outras comunidades. Então não é surpresa que muitos policiais, nas pesquisas até agora divulgadas, revelem que prefeririam trabalhar fora das UPPs.
Quais são agora os principais desafios das UPPs?
Hoje o principal desafio da UPP é que a população dessas áreas perceba que a polícia está lá para proteger os moradores e não controlá-los. É conseguir que a comunidade que mora lá perceba a polícia como uma força ao seu favor e não contra. É um desafio muito difícil, porque estamos falando de décadas ou séculos de construção de uma relação extremamente de atrito entre polícia e comunidade. Para completar este processo vão ser necessários muitos anos, mas é importante dar passos na direção correta e não continuar nessa sensação de piloto automático.
Apesar do desaparecimento e morte de pessoas, e toda essa repercussão negativa na mídia, há pontos positivos na implementação das UPPs?
Houve uma redução de 48% nos homicídios e também de roubos não só nas comunidades onde estão as UPPs, mas também nas áreas do entorno. Não há dúvida nenhuma que as UPPs são bem melhores do que o modelo anterior de guerra em que a polícia entrava nas comunidades dando tiros, saía, voltava e fazia a mesma coisa. Esse modelo com certeza é melhor do que o outro, mas evidentemente há muito trabalho pela frente e muitos problemas a serem resolvidos.