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USP treina IA para detectar transtornos mentais nas redes

20 de abril de 2023

Projeto de cientistas da Universidade de São Paulo usa inteligência artificial para identificar depressão e ansiedade em usuários de redes sociais. Objetivo é ajudar na prevenção de casos mais graves.

Mãos de mulher seguram smartphone
Estudos recentes publicados em revistas científicas mostram que pessoas com transtornos de saúde mental recorrem às redes sociais na mesma proporção que a população em geralFoto: Thomas Trutschel/photothek/picture alliance

Depois de anos mostrando sua intimidade nas redes sociais, Adriana* começou a falar sobre sua depressão. Ela tornou público o diagnóstico médico, feito em 2008, por achar desonesto esconder na internet uma parte da vida dela.

"Não estou preparada para contar toda a verdade. Por enquanto só quero que saibam que dá para ter depressão e ir a festas, trabalhar bem. Mas se alguém te diz que está mal: ouça. Eu raramente recebo acolhimento", diz sobre sua experiência digital.

É nesse mar de informações compartilhadas em perfis como o de Adriana que cientistas da computação começam a treinar a inteligência artificial para reconhecer emoções humanas. Criado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP),  o SetembroBR é o primeiro projeto automatizado na língua portuguesa que analisa perfis de redes sociais para prever quadros de depressão e ansiedade.

A primeira fase do estudo vasculhou dados de 3,9 mil usuários do Twitter que afirmaram ter recebido um diagnóstico ou iniciado um tratamento. O objetivo é usar as informações postadas para criar um modelo computacional capaz de reconhecer quando as pessoas dão os primeiros indícios desses transtornos mentais

"Um dos nossos diferenciais é a cobertura de um volume grande de exemplos que, em tese, permitem construir modelos mais precisos, mais robustos", comenta Ivandré Paraboni, líder do projeto e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

Como a máquina aprende

A depressão é considerada um transtorno mental comum pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O órgão estima que 5% da população mundial adulta sofra da doença. Na América Latina, o Brasil é o país com maior prevalência de depressão, ficando atrás apenas dos Estados Unidos quando se consideram todas as Américas.

Estudos recentes publicados em revistas científicas mostram que pessoas com transtornos de saúde mental recorrem às redes sociais na mesma proporção que a população em geral – entre os mais jovens, até 97% usam essas mídias.

Segundo Paraboni, o SetembroBR, que faz alusão à campanha Setembro Amarelo de conscientização da saúde mental, coleta informações de contas públicas de forma anônima. Trata-se de perfis que fazem um autorrelato e que revelam a data do diagnóstico recebido por um profissional de saúde.

"No projeto, só analisamos as publicações anteriores ao diagnóstico. A gente quer saber como a pessoa se comportou antes da depressão ou transtorno de ansiedade, os indicativos que estão nas redes sociais dela", detalha Paraboni.

Esses indicativos – que não são necessariamente relatos de sintomas como insônia, falta de apetite ou tristeza – têm a ver com o comportamento linguístico e não linguístico. São detalhes que podem revelar padrões abstratos que outros seres humanos, muitas vezes, não conseguem interpretar, mas que os distinguem das pessoas que não sofrem de depressão.

"Existe a premissa de que o estado de saúde mental se reflete nas ações, na maneira de se comunicar, de se relacionar na rede social. Estamos tentando capturar esses traços, esses indícios, para ajudar a prever, antecipar problemas do tipo", adiciona o cientista da computação.

Modelo em operação

Durante o primeiro ano do projeto, a coleta de dados reuniu 46,8 milhões de mensagens e 555 milhões de palavras de tuítes publicados entre 2008 e 2021 por 18.819 usuários únicos. Entre eles, 3,9 mil divulgaram diagnóstico ou tratamento para depressão, transtorno de ansiedade, ou ambos. A maior parte desse grupo são mulheres (77,4%).

Além dos textos, os cientistas também coletaram listas de seguidores e amigos de todos esses perfis. Isso equivale a uma rede de 13,6 milhões de usuários únicos e listas de todas as menções, identificadas pelo caractere @ no Twitter.

"No modelo de texto, olhamos para o que a pessoa escreve, o jeito de escrever, e tentamos dizer se aquilo é um indicativo de um futuro diagnóstico. No modelo não textual, olhamos para relações: quem os são amigos, seguidores, com quem a pessoa está conversando. Isso também permite prever com bastante precisão o risco futuro de um diagnóstico", afirma Paraboni.

Os modelos ainda seriam imperfeitos, mas as técnicas agora passam por um refinamento, dizem os pesquisadores. "O que se espera com ferramentas desse tipo é, uma vez que tenhamos resultados mais estáveis, quem sabe, poder desenvolver aplicações que ajudem as pessoas a monitorar o próprio comportamento", sugere o pesquisador.

Outra possibilidade apontada seria o uso voltado para pais de adolescentes, que usam assiduamente as redes sociais. "A ferramenta poderia sinalizar certos comportamentos que destoam da população média em geral. Poderia sugerir que a avaliação de um especialista é importante, antes que o quadro se agrave. Seria no sentido de prevenção mesmo", justifica Paraboni. 

Diante do aumento recente de casos de violência em escolas, o mesmo experimento poderia ser conduzido a partir de uma nova base de dados, após coleta de informações sobre como os adolescentes conversam e se comportam, por exemplo. "A partir disso, poderiam ser desenvolvidos modelos de prevenção de violência", sugere Paraboni.

Ajuda médica no mundo real

Para Adriana, o desabafo sobre seu diagnóstico nas redes sociais ainda esbarra no preconceito. "Falar só me ajuda quando percebo que fui ouvida e alguém me escreve no privado dizendo 'me sinto exatamente assim'' ou 'obrigada por colocar isso em palavras'", diz à DW, adicionando que o apoio médico é insubstituível.

Deusivania Falcão, psicóloga e professora da USP e colaboradora do projeto SetembroBR, reforça a importância de identificar os sinais e buscar ajuda. "É importante que a pessoa reconheça que existe um sofrimento mental que está atrapalhando a vida pessoal, familiar, laboral. É essa a hora de buscar alguém capacitado para falar sobre essas questões”, explica.

Segundo Falcão, depressão e ansiedade são quadros muito próximos. A depressão é caracterizada por tristeza, perda de interesse, baixa autoestima, humor irritável, alterações de apetite, de sono, cansaço, falta de concentração.

Em geral, ansiedade é uma emoção normal, essencial à vida humana, um mecanismo de defesa. Ela se torna patológica quando fica em níveis muito elevados. "Ela chega ao ponto de prejudicar atividades diárias, causar desequilíbrio físico, emocional, de a pessoa viver em estado de alerta constante", detalha a psicóloga.

Foco é prevenção

Falcão vê no diálogo entre psicologia e computação a possibilidade de prevenir a evolução de casos mais graves de depressão, como o atentado contra a própria vida.

"A inteligência artificial traz uma série de reflexões sobre saúde mental. Um bom uso pode ajudar milhares de pessoas, mas, sozinha, ela não vai dar conta. O bom uso pode ajudar na prevenção, na detecção do problema", comenta Falcão em conversa com a DW.

Embora as pessoas se sintam cada vez mais à vontade nas redes sociais para abrirem o que sentem, para falar de si, a expectativa frustrada de acolhimento e a cultura do cancelamento podem piorar o quadro de sofrimento.

"Somos todos diferentes uns dos outros. A máquina pode ser auxiliadora, mas o contato com um profissional habilitado, capacitado para entender essa complexidade é que vai ajudar no tratamento. Essa individualidade é essencial", justifica a psicóloga.

Adriana faz ainda outra ressalva. "Acredito que a tecnologia jamais poderá fazer um trabalho melhor do que a humanidade enquanto for a humanidade quem programar essa tecnologia: temos vieses de gênero, vieses altamente racistas… Por que essa tecnologia escaparia desse direcionamento perigoso de seus criadores?", questiona.

Paraboni também vê limites no SetembroBR. "Não se trata de diagnosticar as pessoas. Somos uma equipe de computação, não temos formação médica, só quem pode fazer o diagnóstico é o especialista médico. Acreditamos que a ferramenta pode auxiliar. Não há nenhuma pretensão de substituir ou automatizar isso, isso aliás não faz sentido", reforça.

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*A pedido da entrevistada, foi usado um nome fictício.

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