Vídeo na selva
4 de maio de 2003Mari Corrêa e Vincent Carelli apresentam o projeto e discutem com o público suíço em Zurique e na Basiléia, onde os filmes participam do fórum organizado pela IGWIA (International Work Group on Indigenous Affairs). A ONG surgiu na Dinamarca e apóia a causa dos povos indígenas em todo o mundo, informou à DW-WORLD Angela Deppeler, da seção suíça da organização.
Esses povos "geralmente são marginalizados social, econômica e políticamente no próprio país", por isso "IGWIA apóia projetos realizados nos respectivos países, procurando divulgá-los na Europa. Também realiza estudos e financia publicações."
As produções
Além de O espírito da televisão, Das crianças ikpeng para o mundo e Shomotsi - as três produções brasileiras, o programa inclui filmes dos inuit, do norte do Canadá, e dos aborígenes australianos, que já têm uma certa tradição na realização de cinema, tanto é que já existem firmas de produção cinematográfia indígena nesses países.
O projeto brasileiro "começou 15 anos atrás, dentro de um grupo de militância de indigenismo alternativo, como a gente dizia na época", contou Vincent Carelli à DW-WORLD. Sua idéia, quando surgiu câmara compacta de VHS era "criar uma rede de intercâmbio de imagens entre os índios", pois eles tinham poucas oportunidades de conhecer o dia-a-dia, as cerimônias dos outros povos. O projeto experimental começou na tribo dos nambiquara, no norte do Mato Grosso.
Encontro da tecnologia com a tradição
Por maiores que fossem as diferenças culturais, no entanto, os problemas eram os mesmos, dai a importância de mostrar "como os caiapós enfrentaram a questão da madeira, os ianomamis a questão do garimpo". Os indios ficaram fascinados com as imagens e o filme Espírito da TV mostra justamente o momento do descobrimento do audiovisual. "O vídeo permite a você dar um feedback imediato, toda a metodologia era essa, ir filmando, ir mostrando e isso gerava catarses coletivas."
Curiosamente, não foram os jovens, tão abertos à modernidade, que mais se entusiasmaram com a novidade, e sim os velhos, que normalmente ficavam de fora "quando se trata de dinheiro e não têm acesso à leitura. Eles imediatamente entenderam que era um eco para o seu discurso tradicionalista. Na verdade houve um encontro da tecnologia com a tradição. Muitas vezes as pessoas acham que há uma contradição entre uma coisa e outra, mas não. No audiovisual foi um encontro feliz", analisa Carelli. A questão é que "todo mundo vai para as aldeias fazer imagem para levar os problemas deles para fora... Mas as pessoas não percebem que eles querem que tragam coisas. Eles querem ver o mundo".
O cotidiano na tela
Agora é o mundo que está vendo o que eles fazem. E seus filmes têm uma marca própria. Angela Deppeler, justifica o que há de especial na escolha das produções exibidas na Suíça. "Consideramos esses filmes especiais, porque estamos todos acostumados a ver filmes sobre povos indígenas feitos por cineastas do ocidente. Quisemos justamente virar a perspectiva e dar aos povos indígenas a possibilidade de mostrar seus filmes, contar suas histórias".
Por mais diferentes que sejam as condições de vida de um sami, na Noruega, de um índio brasileiro ou de um inuit do Canadá, o que os filmes têm em comum é que eles preferem mostrar seu cotidiano, "é assim que nós vivemos, isso é o que vocês lá fora talvez devam saber sobre nós. Assim, esses filmes talvez corrijam a imagem que se tem dos povos indígenas".
Para consumo interno e externo
Vincent Carelli admite que, no início, teve até escrúpulos de ensinar os índios além de como manejar a câmara, por não querer impor a sua visão de como deve ser um filme. No entanto, depois acabou convencido da importância de promover oficinas. Isso aconteceu com a participação em festivais no exterior, onde ficou conhecendo iniciativas semelhantes e percebeu que, além de documentar as experiências para o intercâmbio entre os próprios povos indígenas, era possível também "abrir uma janela para fora", através dos filmes.
"Ter a visão histórica dos que estavam 30, 40 anos na frente, ajudou a gente a afinar o prumo. Vimos que tínhamos que capacitar essa gente, para que eles pudessem produzir de uma maneira mais profissional. Então podia ser uma janela para fora, não precisa só ficar entre eles. Foi quando o projeto ganha essa outra dimensão, uma dupla dimensão: para dentro e para fora", recorda Vincent.
Uma vídeo-carta
O filme das crianças ikpeng foi precedido de um acontecimento interessante. Elas viram uma vídeo-carta de crianças cubanas, da Sierra Maestra, e resolveram respondê-la, também em forma de vídeo-carta. Os adolescentes filmaram o dia-a-dia das crianças nessa tribo no médio Xingu. As imagens mostram crianças tomando banho no rio, fazendo arco e flecha para matar passarinho, aviõezinhos de talo de palmeira, enquanto as meninas brincam de casinha e o pega-pega por lá é "fugir da onça".
Já Shomotsi traça o retrato de um velho, que ficou com seus filhos quando a mulher foi embora. A câmara acompanha-o na lavoura, à cidade buscar a aposentadoria que demora três dias para chegar, mascando folhas de coca... pois "Shomotsi é da tribo dos ashaninca, que vivem na fronteira do Brasil com o Peru, 2 mil do lado brasileiro, 35 mil do peruano. Apesar de estarem distante dos Andes, sofreram grande influência dessa região devido ao comércio de sal, que remonta até à época dos incas.
Um olhar que aproxima...
Esses filmes, que já ganharam vários prêmios em festivais, ajudam a mostrar os povos indígenas como eles se vêem, desfazendo os clichês habituais. Ao enfocar o próprio, específico, desmistificam a idéia do exótico, que apenas separa. O olhar de Carelli e dos povos indígenas, na interação da câmara com os entrevistados, é um olhar que humaniza e aproxima. O espectador acaba pensando no que é universal e próprio do ser humano e constatando que criança é criança em todo lugar, até mesmo na selva.