1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Alemanha é esperança para vítimas de crimes sexuais na Síria

Lisa Ellis ip
24 de junho de 2020

A violência sexual nas prisões do regime sírio é brutal e generalizada, mas os responsáveis parecem agir impunemente. Agora, ativistas de direitos humanos na Alemanha lutam por reparação para milhares de sobreviventes.

Mulheres na Turquia protestam em favor das vítimas que sofrem em prisões sírias
Mulheres na Turquia protestam em favor das vítimas que sofrem em prisões síriasFoto: picture-alliance/AA/E. Turkoglu

Muitas vezes, o horror começa já no momento da prisão. Primeiro, os soldados tocam as detentas de maneira inadequada. Na chegada ao presídio, elas são então forçadas a se despir. A invasão de seus corpos começa geralmente com uma revista agressiva e íntima por um guarda masculino.

Para milhares de detentas em prisões do regime sírio, isso marca o início de uma jornada para o inferno – que muitas vezes termina com as vítimas violadas e então excluídas de suas famílias e comunidades.

A violência sexual baseada em gênero é um dos crimes mais comuns nas casas de detenção do regime sírio, afirma a especialista em direito internacional Alexandra Lily Kather. No entanto, é também um dos mais subnotificados.

"Sabemos de ataques aéreos, sabemos de armas, sabemos de tortura, sabemos do ['Estado Islâmico']", diz Kather, que trabalha no Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR, na sigla em inglês), em Berlim.

"Mas o que não tem sido mostrado suficientemente – seja pela mídia, seja em termos de exigir que os culpados sejam responsabilizados – é a violência sexual [nas prisões do governo], apesar da devastação que ela causa tanto para a vítima quanto para a sociedade como um todo."

Na semana passada, Kather e seus colegas do ECCHR deram um passo que esperam que mude o estado das coisas de maneira radical. Juntamente com a ativista de direitos sírios Joumana Seif, Kather apresentou uma queixa criminal à promotoria federal da Alemanha pedindo que a violência sexual e de gênero na Síria seja considerada crime contra a humanidade.

Atos espantosos de crueldade 

A Alemanha foi o primeiro país a julgar por crimes de guerra dois ex-oficiais de inteligência sírios na cidade alemã de Koblenz, sob o princípio da jurisdição universal, que permite que indivíduos sejam julgados por crimes cometidos no exterior.

Apesar de aplaudir o ato, o ECCHR criticou o fato de a Alemanha não incluir a violência sexual como um crime contra a humanidade em quaisquer acusações ou mandados de prisão, o que, na opinião da entidade, é uma grave negligência e um golpe para as vítimas.

"A partir das evidências de que dispomos", diz Kather, "podemos ver claramente que a violência sexual fazia parte de um ataque sistemático e generalizado à população civil e, portanto, deveria ser categorizada como um crime contra a humanidade."

Lily Kather e Joumana Seif, do ECCHRFoto: ECCHR

O Conselho de Direitos Humanos da ONU compartilha dessa opinião. Em relatório perturbador publicado em 2018, o órgão relatou abusos de forma minunciosa, com base nos depoimentos de quase 500 sobreviventes e testemunhas.

De todas as partes envolvidas na guerra, as forças e milícias pró-governo responderam pela maior parte das agressões sexuais e estupros. As Nações Unidas concluíram que eles usam a violência sexual como arma para instilar medo e humilhar.

Na seção sobre prisões, o relatório descreve atos espantosos de crueldade contra uma menina de nove anos, estuprada por um guarda sírio. Também há relatos de outras vítimas sendo torturadas sexualmente e ameaçadas de estupro ou estupradas na frente de outros guardas e detentos.

"Leve-a. Faça o que quiser com ela", disse um general de brigada a um policial de baixo escalão que demonstrava interesse em uma detenta, segundo o relatório.

Homens e meninos também foram estuprados e violados sexualmente na cadeia, mas, segundo o texto, mulheres e meninas foram alvo de maneira desproporcional.

A queixa do ECCHR

A necessidade de buscar reparação por tais atrocidades está no cerne do caso defendido pelo ECCHR. A entidade age em nome de sete sobreviventes, incluindo quatro mulheres sírias e três homens atualmente radicados na Europa.

Todos eram civis detidos em prisões operadas pelo serviço de inteligência da Força Aérea da Síria em Aleppo, Hama e Damasco. O ECCHR afirma ter identificado nove responsáveis pelos crimes, com base no testemunho das vítimas e em outras evidências.

Como parte da queixa criminal, os advogados internacionais do ECCHR emitiram um pedido à promotoria federal da Alemanha para que um mandado de prisão existente contra Jamil Hassan, ex-chefe do serviço de inteligência da Força Aérea da Síria, seja alterado para incluir a violência sexual como um crime contra a humanidade.

Além disso, eles pediram a abertura de investigações, também com foco em crimes de natureza sexual, contra outros oito supostos autores dos crimes, assim como a expedição de mandados de prisão.

O julgamento de Koblenz está em andamento contra dois ex-oficiais sírios por crimes contra a humanidadeFoto: Reuters/T. Lohnes

"Mulheres pagam duplamente"

A ativista de direitos humanos e especialista jurídica Joumana Seif ressalta a importância de caracterizar crimes como "sexuais", em oposição a outras formas de brutalidade, especialmente na Síria.

"A maioria dos sobreviventes são mulheres e, quando elas são libertadas, apesar de terem experiências tão terríveis na prisão, são discriminadas [do lado de fora]. Elas pagam duplamente", diz Seif. "Elas precisam de serviços especiais de saúde, de ajuda psicológica e do direito de serem protegidas. Elas precisam de reconhecimento."

Por sua vez, homens submetidos a violência sexual na prisão sentem, muitas vezes, que tiveram sua masculinidade comprometida e temem perder o respeito de seus colegas, afirma Kather. Para as mulheres, contudo, as consequências podem ser duplamente devastadoras, reitera.

"Se uma mulher foi violada sexualmente, ela é condenada por ter manchado a honra da família e será marginalizada", diz Kather. "Isso desestabiliza a família, e se famílias são desestabilizadas uma após a outra, acaba-se desestabilizando o núcleo da sociedade."

A justiça para as vítimas de crimes sexuais e de gênero também é vista como chave para quaisquer futuros esforços de reconciliação, especialmente considerando o que o relatório da ONU chamou de "quase total ausência de responsabilidade por tais violações".

Por ora, no entanto, Kather se concentra no presente. "Trata-se de um regime, de um Estado que usa os corpos das pessoas com o objetivo político de oprimir e aterrorizar", avalia. "E exigimos responsabilização à promotoria alemã."

____________

A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube 
App | Instagram | Newsletter

Pular a seção Mais sobre este assunto

Mais sobre este assunto

Mostrar mais conteúdo