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"Atribuir abuso policial a 'maçã podre' exime autoridades"

4 de dezembro de 2024

Casos de violência policial em São Paulo não são fenômeno isolado, mas refletem a falta de comprometimento com uso responsável da força policial, diz pesquisadora. "A responsabilidade não é só do PM, é institucional"

PM de São Paulo
De janeiro a setembro, 474 pessoas foram mortas por policiais em serviço em São Paulo, 82% a mais do que no mesmo período do ano passado.Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O vídeo de um policial militar de São Paulo jogando um homem de uma ponte é o caso mais chocante de uma sequência de episódios de violência cometidos por agentes da PM paulista nos últimos dias – que inclui um policial de folga matando um homem que furtou sabão com 11 tiros pelas costas e um motociclista rendido no chão levando chutes e pontapés de agentes fardados.

Após a repercussão ganhar corpo, o comandante da PM de São Paulo afirmou que o policial que atirou o homem da ponte havia cometido um "erro emocional", e o governador paulista, Tarcísio de Freitas, que "aquele que atira pelas costas, que joga uma pessoa de uma ponte, não está à altura de usar essa farda".

No entanto, para Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, esses casos não são um fenômeno isolado, mas refletem a redução do controle do uso da força policial pelo atual governo paulista.

Ela afirma à DW que "a velha teoria da maçã podre", que atribui os episódios às decisões individuais de policiais, acaba sendo a saída fácil para eximir as autoridades da "responsabilidade política" que têm pela atuação das forças de segurança.

"Olhar isso como caso isolado é não enfrentar os fatores que geram essa violência e que permitem que ela se mantenha ao longo do tempo. (...) A responsabilidade não é só dele [do policial], é institucional, é da corporação e é política. (...) Afinal, quem é o comandante? Quem é o gestor que responde?", questiona.

Ela avalia ainda que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, têm um histórico de declarações que indicam aos policiais "uma impressão de que se espera impunidade" – com o objetivo de cativar eleitores bolsonaristas.

DW Brasil: A polícia paulista está mais violenta nos últimos tempos ou é uma coincidência de casos aparecendo na mídia?

Cristina Neme: A violência policial é sistêmica, não é um fato isolado. Mas quando as lideranças políticas não assumem um compromisso com o controle do uso da força, com uma política pública de segurança que preserve direitos, aumenta o risco dessa violência se multiplicar – é o que estamos vendo agora.

Não temos uma posição da liderança política no estado de São Paulo, seja do governo ou da secretaria de Segurança Pública, comprometida com o uso responsável da força policial, que é um atributo das polícias em todo o mundo.

De janeiro a setembro, 474 pessoas foram mortas por policiais em serviço em São Paulo, 82% a mais do que no mesmo período do ano passado. O que explica esse aumento da letalidade policial?

É um indicador objetivo e significa que houve retrocesso em relação à política que estava sendo adotada. Tínhamos uma política que resultou na redução da letalidade e envolvia a implementação de câmeras corporais – não é a única medida, mas ela é importante para o uso da força proporcional e moderado.

Foi uma iniciativa positiva, que na nova gestão acabou enfraquecida, e isso sinaliza a orientação da política de segurança pública. Não houve um compromisso claro da liderança política, que, ao contrário, fez um discurso para as bases, para a tropa, falando que não precisava de câmera. Isso passa uma mensagem, há uma impressão de que se espera impunidade.

Por ser um dado concreto, a alta da letalidade mostra como não dá pra ficarmos com explicações vagas, como se fosse um caso particular, um problema de saúde mental do policial ou de falta de treinamento. Mostra como é um problema sistêmico.

O secretário de segurança pública paulista, Guilherme Derrite, é um ex-capitão da Rota que foi afastado da tropa por excesso de mortes em serviço. Que reflexo a escolha de uma pessoa com esse perfil para o comando da segurança tem na polícia?

Só reforça o que falei, é mais um sinal de que não temos um comprometimento com uma política de segurança pública democrática e eficaz.

Porque a segurança pública exige muitas medidas complexas e articuladas com outros setores. Temos que sair dessa dicotomia entre defender ou não o controle da força pela polícia, como se isso só fosse resolver os problemas graves de segurança no cotidiano da cidade. Precisamos de políticas públicas baseadas em inteligência, em prevenção, em policiamento distribuído igualmente nas várias áreas da cidade.

Tarcísio de Freitas afirmou nesta quarta-feira que Derrite está fazendo um bom trabalho e que segue no cargo. Qual é o cálculo político e de gestão que motiva o governador?

Manter um compromisso com essa política mais bolsonarista, que se opõe ao controle do uso da força policial. E que manipula valores para ganhar voto – não está comprometida com o desenvolvimento da corporação policial, o melhoramento das condições de trabalho dos policiais ou a saúde dos policiais. Ela rifa a boa política de segurança em nome de ter apoio dessa base mais ligada aos valores bolsonaristas.

As notas à imprensa divulgadas após episódios de violência policial costumam falar em "ações isoladas" e fazer promessas de "apurações e punições rigorosas". Isso acontece na prática?

Isso se repete ao longo do tempo, é uma resposta burocrática e protocolar. Olhar isso como caso isolado é não enfrentar os fatores que geram essa violência e que permitem que ela se mantenha ao longo do tempo.

É óbvio que um policial que faz uma ação ilegal como jogar alguém pela ponte ou atirar pelas costas agiu individualmente e pode ser punido individualmente se for condenado. Mas a responsabilidade não é só dele, não é só individual, é institucional, é da corporação e é política. Essa velha teoria da maçã podre, de caso isolado, é a resposta fácil para esses casos, e para se eximir da responsabilidade política que as autoridades têm. Afinal, quem é o comandante? Quem é o gestor que responde?

É necessário algum tipo de reforma das forças policiais no Brasil?

Sim, estruturais e também incrementais. Mas para fazer isso temos que ter um compromisso tanto da autoridade política como da corporação. As grandes mudanças só aconteceram em momentos críticos. Se a gente pensar em outras sociedades, por exemplo, na Colômbia, houve um comprometimento interno muito forte da liderança dentro das corporações para diminuir a corrupção e a violência policial. Se você não tem adesão da cúpula dessas corporações, fica difícil.

E a sociedade precisa assumir que não é essa a política que a gente quer. Que queremos uma política que respeite os direitos de toda a população, e não que viole os direitos.

Também temos que falar do perfil das vítimas da letalidade policial e de abordagens abusivas. Isso ocorre mais nas áreas mais vulneráveis, onde há população de mais baixa renda, sobretudo negros. O que faz muitas vezes que esse seja um problema invisível socialmente. Agora estamos num momento crítico, de grande indignação, mas no cotidiano, quando você não tem exposição da natureza dessa violência, acaba ficando invisível, porque atinge grupos mais vulneráveis.