"Violência urbana mata mais que uma guerra"
24 de julho de 2014O diretor-executivo e um dos fundadores da ONG Viva Rio, Rubem César Fernandes, recebeu nesta quinta-feira (24/07) em Wiesbaden, na Alemanha, o Prêmio da Paz de 2014 pelo reconhecimento ao trabalho da organização contra a violência e na área de desenvolvimento social.
Em entrevista à DW Brasil, Fernandes explica como surgiu a organização e destaca o trabalho realizado pela entidade, como o programa de desarmamento. Além disso, ele fala sobre a descriminalização de drogas no Brasil, os resultados da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para a cidade e a ação da organização no Haiti e no Congo.
"Foi muito importante recebermos o prêmio", disse Fernandes. "A escolha tem a ver com um olhar para um tipo de violência que é diferente dos conflitos como guerra civil, de religiões e de etnias. A violência urbana muitas vezes acaba sendo mais letal do que uma guerra."
Criado em 1993, o prêmio, concedido pelo estado alemão de Hessen, é dado anualmente a um político, acadêmico ou humanitarista que se destaca na luta pela paz no mundo. O vencedor é escolhido pelo Conselho de Curadores da Fundação Albert Osswald, formado por representantes das mais influentes organizações de pesquisa da Europa.
Deutsche Welle: Qual é a importância do prêmio para a ONG?
Rubem César Fernandes: Foi muito importante recebermos o prêmio. A escolha tem a ver com um olhar para um tipo de violência que é diferente dos conflitos como guerra civil, de religiões e de etnias. A violência urbana muitas vezes acaba sendo mais letal do que uma guerra. O prêmio foi a abertura de um novo tema, sobre esse tipo de violência. A valorização internacional da ONG também é importante.
Qual foi o ponto de partida para a fundação do Viva Rio?
Os episódios das chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em julho de 1993. Esses dois fatos criaram um trauma e uma movimentação enorme da opinião pública na cidade. Era um momento em que o Brasil e o mundo estavam mudando. O Viva Rio foi uma resposta à violência, como evidenciada nas duas chacinas, que foram muito traumáticas, mas também a situação de crise e decadência da cidade do Rio de Janeiro. A violência era o sintoma de crise da cidade.
Quais são as diferenças entre a violência no Rio de hoje e de 20 anos atrás, quando foi criado o Viva Rio?
Em 1995, o índice de homicídio do Rio estava entre os maiores do Brasil, na faixa de 78 por 100 mil habitantes. Hoje, está em torno de 25 por 100 mil. Houve, claramente, uma redução considerável da violência, mas ela é ainda muito alta. A gente vivia num círculo vicioso de violência que parecia sem controle. E com a política de pacificação de favelas houve finalmente um caminho, uma estratégia foi definida.
Mas, em sua opinião, houve progressos?
Reconhece-se que houve progressos, e o Rio saiu daquela situação de crise, de uma cidade que parecia destinada à decadência para o renascimento. O estado e a cidade recebem investimentos num ritmo muito maior do que a média nacional. Apesar de vários problemas que ainda persistem, o Rio está vibrante, existem obras para todo o lado.
As UPPs têm pontos positivos, como a redução da violência nas comunidades. E negativos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo. Como o senhor as avalia?
A política de pacificação abrange um segmento da polícia, que é o de policiamento ostensivo em favelas. Mas não é só ele que é um problema, mas todo o sistema de polícia precisa ser revisto. Ela é ainda muito centralizada e burocrática, não tem uma estrutura funcional. Ela é herdeira de uma tradição que precisa ser radicalmente revista, não só a polícia que atua em favelas. E, além disso, as UPPs são eficazes em favelas de porte médio ou pequeno, onde operacionalmente há mais controle.
E nas grandes favelas?
Em grandes favelas, como do Alemão, Jacarezinho, Rocinha e Maré, falamos em mais de 100 mil habitantes. A UPP não é evidentemente uma solução para todos os problemas, mas ela abriu um horizonte. Até o início da política de pacificação, a impressão que existia era que vivíamos num círculo infernal e sem saída. Desde que se abriu esse caminho, percebeu-se que existem estratégias eficazes. A outra dificuldade é integrar políticas sociais e de desenvolvimento.
O Prêmio pela Paz dado ao Viva Rio foi também pelo destaque da ONG na luta pelo desarmamento. Quais foram as consequências do projeto?
O controle das armas de fogo foi um dos grandes temas da ONG. O ápice do recolhimento de armas foi de 2003 a 2005. Arrecadamos mais de 500 mil armas. Em primeiro lugar, conseguimos colocar o controle das armas de fogo na agenda pública. A campanha, que começou em 1994, atingiu o clímax em 2003 com a mudança da lei do Estatuto do Desarmamento. Mas esse foi o ‘mal passo' que demos quando ficamos orgulhosos e achamos que ganharíamos todas [as batalhas] e entramos na ideia de realizar o plebiscito para proibir a venda de armas a civis no Brasil – e aí nós perdemos. Mas, mesmo assim, a entrega de armas ainda existe e virou uma referência.
Quais são os outros projetos realizados pela ONG?
A descriminalização do consumo de drogas, por exemplo. Temos um trabalho enorme de assistência primária de saúde em favelas. São mais de 6 mil funcionários que trabalham nessas regiões, a maior parte deles na assistência primária, em emergência nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Cuidamos de saúde mental e de drogas e álcool, além da área de educação. Eu considero que o Viva Rio é uma empresa social, que começou como um movimento e virou uma prestadora de serviços em favelas.
Quais são os principais empecilhos para que a legislação sobre o consumo de drogas seja alterada no Brasil?
Na opinião pública, as drogas estão muito associadas ao medo e à insegurança. Criou-se uma dificuldade de lidar com o tema de uma forma mais natural, é difícil até discutir na escola sobre o consumo de drogas. A proibicionismo dificulta não apenas o lado da segurança, porque fortalece o crime organizado, mas também a assistência para quem precisa e para quem abusa da droga. Existe uma inibição coletiva de lidar com o problema. Em ano de eleições não teremos resultados, mas vamos retomar a campanha no ano que vem.
O Viva Rio atua no Haiti desde 2004 e, em 2010, houve o terremoto que devastou o país. Como está a reconstrução do país?
Eu passo dez dias por mês no Haiti e digo que a reconstrução é de uma lentidão exasperante – mas não apenas do governo do Haiti, mas também das agências internacionais. É aí que você percebe que o sistema internacional não está preparado para enfrentar crises deste tipo. Não há instrumentos, políticas nem recursos. Não há meios institucionais adequados para lidar com o ritmo de uma reconstrução, que tem que ser rápida.
Há a expectativa de a ONG atuar em outros países da América Central e da África?
Temos recebido convites, mas vamos devagar. Analisamos cada situação com o cuidado de não nos precipitarmos. Estamos começando um pequeno projeto no Congo em agosto e vamos trabalhar com jovens por meio da capoeira. Inclusive estamos levando um monitor, que formamos no Haiti, para ir ao Congo e participar do projeto.