Depois do acerto com os "fundos abutres", visita do presidente americano é novo impulso à política econômica de Macri, que tenta recuperar imagem do país entre investidores.
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Em visita à Argentina, Obama fala sobre a crise brasileira
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"Macri está passando por um momento de ouro", escreveu o colunista Carlos Cué na edição latino-americana do jornal espanhol El País. "Ele provou que, apesar da oposição, pode fazer passar pelo Congresso importantes projetos de leis. E agora ninguém menos que o presidente dos EUA, Barack Obama, está de visita."
A Argentina está de volta ao cenário internacional. Após anos de exclusão diplomática sob os governos de Néstor e Cristina Kirchner (2003 a 2015), o país sul-americano retorna a seus antigos aliados. Já em fevereiro, foi a vez do presidente francês, François Hollande, e do primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, prestigiarem o chefe de Estado argentino, eleito em 22 de novembro de 2015.
Livre comércio, não obrigado!
E agora também Obama. Para o presidente americano, a Argentina não é um terreno fácil. A última visita de um inquilino da Casa Branca aconteceu 11 anos atrás. Na Cúpula das Américas, em 2005, George W. Bush viu esmagado seu plano de estabelecer uma zona de livre comércio do Alasca à Patagônia (a Alca, sigla para Área de Livre Comércio das Américas).
Mesmo a visita de Obama não acontece sem polêmica. Pois o presidente americano aterrissa justamente 24 horas antes do 40° aniversário do golpe militar argentino. Em carta aberta, o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel instou Obama a adiar sua visita. "Nesse dia, ele não é bem-vindo, porque os EUA estão por trás de todas as tentativas de desestabilização no continente", afirmou Esquivel.
Nesse ponto, o presidente argentino, Mauricio Macri, deve discordar. Para ele, o apoio de Obama vem na hora certa. Macri quer pôr um fim à crise de endividamento do seu país e, para tal, já em fevereiro apresentou uma oferta aos credores.
O governo em Buenos Aires pretende pagar 6,5 bilhões de dólares a seis fundos de hedge e 1,3 bilhão de dólares a um grupo de investidores italianos. Isso corresponde a cerca de 75% das exigências oficiais de pagamento.
Trauma de insolvência
A crise de endividamento remonta à falência estatal do final de 2001. Os credores de 93% dos cerca de 100 bilhões de dólares em dívidas estatais haviam concordado em renunciar, em diversas rodadas de reestruturação da dívida, a mais de dois terços de suas cobranças. Somente 7% se recusaram a concordar com o reescalonamento e acionaram a Justiça.
Entre esses chamados holdouts estão os fundo de hedge americanos NML e Aurelius, que haviam comprado títulos argentinos a preços muito baixos diretamente dos credores originais. A crise se acirrou quando o juiz nova-iorquino Thomas Griesa decidiu, em 2012, que a Argentina deveria, primeiro, cumprir as exigências dos fundos de hedge antes de cumprir os pagamentos da dívida reescalonada.
Em seguida, a ex-presidente Cristina Kirchner partiu para o contra-ataque verbal. Seu país não se deixaria chantagear por "fundos abutre" e "terroristas financeiros", argumentava a então chefe de Estado. O confronto levou a um default técnico, ou seja, um "calote" da dívida. Desde agosto de 2014, a Argentina não tem acesso ao mercado financeiro internacional – e assim também a novos empréstimos.
Bloqueio suspenso
Mas agora o bloqueio foi suspenso. Desde a oferta feita aos fundos de hedge, os argentinos podem novamente levantar empréstimos no mercado de capitais.
Os fundos de hedge concordaram com a oferta que satisfaz 75% de suas reivindicações. O Congresso argentino aprovou o acordo, e isso apesar de o governo não ter maioria parlamentar. Após esse triunfo político de Macri, a aprovação ainda pendente por parte do Senado é vista como certa.
Mas o preço para o retorno da Argentina ao cenário internacional é alto: para cumprir com todas as suas obrigações financeiras, o governo de Macri precisa contrair empréstimos na ordem de 12,5 bilhões de dólares. Trata-se do maior endividamento do país desde 1996.
O ex-ministro argentino da Economia Axel Kicillof disse já ver novos abutres sobrevoando Buenos Aires. "Temos que nos rebaixar dessa maneira?", indagou o ministro na imprensa local. "A dívida externa sempre trouxe pobreza para nosso país e reduziu nossa indústria."
O seu sucessor no cargo, Alfonso Prat-Gay, discorda: "Pela primeira vez em 15 anos podemos dizer que a Argentina começa a sair do default", argumentou. "O acordo com os credores inundou de expectativas a economia."
O fim da era Cristina Kirchner
Após 12 anos de kirchnerismo, a Argentina elege um novo presidente. Relembre a trajetória de Cristina Fernández de Kirchner, que deixa tanto problemas econômicos quanto avanços sociais como herança de seu governo.
Foto: Getty Images/AFP/F. Monteforte
Cristina Fernández, "relato" e dramaturgia
Em oito anos de governo, Cristina se destacou por seu estilo e a tendência ao drama – foi acusada, inclusive, de criar um "relato" próprio da realidade da Argentina. Neste ano, ela deixa a Casa Rosada, e a era Kirchner chega ao fim. Com uma maioria kirchnerista no Congresso, porém, Cristina promete seguir influenciando a vida política do país.
Foto: Getty Images/A.Pagni
A sucessora de Néstor Kirchner
Cristina começou sua carreira política em 1989, como deputada pela província de Santa Cruz. Conheceu Néstor Kirchner durante a militância peronista, em 1974, e os dois se casaram no ano seguinte. Ele foi presidente da Argentina de 2003 a 2007, ano em que a mulher ganhou as eleições para sucedê-lo. A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, foi um duro golpe para Cristina e seus dois filhos.
Foto: D. Garcia/AFP/Getty Images
Laços estreitos com o Mercosul
Na foto, Cristina e o presidente da Bolívia, Evo Morales, vestem trajes típicos bolivianos durante uma cerimônia na Casa Rosada, sede da presidência em Buenos Aires. Ela sempre defendeu laços estreitos com os países vizinhos. Em 2013, anunciou que aceleraria "a reconstituição do Mercosul" e, no mesmo ano, disse que a espionagem dos EUA sobre o Brasil afetava a "dignidade" de toda a América do Sul.
Foto: Reuters/M. Brindicci
A reeleição
Em 2011, Cristina foi reeleita presidente da Argentina com 54,11% dos votos. Na foto, ela posa entre os dois filhos, Máximo e Florencia, em frente ao Congresso Nacional, em Buenos Aires, após tomar posse. Atualmente candidato a deputado, Máximo está sendo investigado sob suspeita de manter contas secretas nos Estados Unidos e Irã. Ele nega as acusações.
Foto: picture-alliance/dpa/C. de Luca
Um vice em apuros
Amado Boudou, então ministro da Economia, foi nomeado vice-presidente no segundo mandato de Cristina. A escolha foi mais tarde criticada, principalmente pelas polêmicas acusações que emergiram contra ele. O escândalo político conhecido como Ciccone, por exemplo, ligou Boudou à compra de uma falida empresa monopolista a fim de operar com o Estado na impressão de notas e documentos fiscais.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Goya
A luta contra o "Clarín"
O debate sobre a concentração da mídia segue aberto na Argentina. Cristina Kirchner travou uma longa batalha contra o grupo argentino "Clarín", acusando-o de monopólio midiático. Ao mesmo tempo, foi criticada por estimular a criação de um grupo de "veículos viciados no governo", segundo apontou, em entrevista à DW, a jornalista Laura di Marco, autora de uma biografia não autorizada da presidente.
Foto: picture alliance/dpa Fotografia
Direitos humanos
Cristina deu continuidade às políticas de direitos humanos de Néstor: aprovou leis acerca do casamento gay e da transexualidade e apoiou a busca por crianças desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Na foto, ela conversa com Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Seu neto, Guido, recuperou a verdadeira identidade ao ser encontrado em 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
Discurso em rede nacional
A presidente está acostumada a falar em rede nacional – algo aplaudido por seus seguidores e criticado pela oposição. Ao se dirigir ao público, Cristina mantém um estilo sempre muito pessoal e, para muitos, carismático. "O kirchnerismo trouxe independência à Argentina", disse ela em um de seus discursos, em julho de 2015.
Foto: picture-alliance/dpa/L. La Valle
Falta de transparência
Em junho de 2015, Cristina enviou ao Congresso um projeto de lei para que alguns programas sociais sejam ajustados de tempos em tempos. Entre eles está o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol), equivalente ao Bolsa Família. Esses avanços na área social, porém, acabam sendo ofuscados pela falta de transparência com os índices de pobreza, a alta inflação e o déficit fiscal.
Foto: Reuters/E. Marcarian
Argentina versus "fundos abutres"
A batalha contra os chamados "fundos abutres" segue no país. Em setembro de 2015, a ONU aprovou uma resolução, recomendada pela Argentina, que propõe a criação de um marco legal para a reestruturação da dívida soberana. O ministro da Economia, Axel Kicillof (dir.), comemorou a decisão como "um passo fundamental".
Foto: Leo La Valle/AFP/Getty Images
Cristina, papa e "Estado Islâmico"
Em setembro de 2014, o papa Francisco recebeu Cristina, sua compatriota, no Vaticano. Após um encontro privado com o pontífice, a presidente revelou ter sofrido ameaças do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI) por conta de sua posição diplomática diante dos conflitos no Oriente Médio – ela é favorável à existência de dois Estados: o da Palestina e o de Israel.
Foto: picture-alliance/dpa
Incentivo à cultura
Em nível nacional, o governo Cristina Kirchner deu um impulso importante à realização de eventos culturais e artísticos, mas com um estilo claramente personalista. Na foto, a presidente argentina participa da inauguração do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, em maio de 2015. Na ocasião, ela classificou o local como o "mais importante centro cultural da América Latina".
Foto: Reuters/Argentine Presidency
Duas cirurgias
Em seu segundo mandato como presidente da Argentina, Cristina foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos sérios: um para remover um tumor na tireoide, em janeiro de 2012, e outro para drenar um hematoma cerebral, em outubro de 2013. Ela teve boa recuperação em ambos os casos, mas precisou ficar afastada do trabalho por um curto período de tempo.
Foto: picture-alliance/dpa
Negócios com a Rússia
Cristina se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, em abril de 2015, e do encontro pode ter saído muito mais que os acordos energéticos e econômicos firmados. Em ano eleitoral na Argentina, o gesto chegou a ser interpretado como um esforço da presidente para afastar o país de seu tradicional alinhamento com os Estados Unidos e a União Europeia e estimular uma aproximação com os Brics.
Foto: Reuters/A. Nemenov
Caso Nisman choca o país
A morte do promotor Alberto Nisman abalou a sociedade argentina e continua sem esclarecimento perante a Justiça. Ele foi encontrado morto em casa em 18 de janeiro de 2015, dias antes de divulgar um relatório polêmico contra a presidente. Nisman acusaria Cristina de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país: o atentado a bomba à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Pisarenko
Sucessor da era Kirchner?
Daniel Scioli, da coligação Frente para a Vitória, é o candidato à presidência argentina capaz de dar continuidade ao programa político do kirchnerismo. Segundo especialistas, o governo deixa como herança para o próximo presidente graves problemas econômicos e estruturais, mas também avanços sociais e um aumento no nível de consumo da população.
Foto: Reuters/A.Marcarian
Adeus à figura que polariza
Com seu estilo autoritário e maternal, Cristina Kirchner polarizou a sociedade argentina. Esteve cercada de acusações de corrupção, e a insegurança jurídica cresceu durante seu governo. Por outro lado, deu impulso à cultura e aos direitos civis. Ao dizer adeus, Cristina deixa um legado complexo à próxima administração, e é improvável que se afaste totalmente da agenda política do país.