Volta da França ainda luta contra o doping
22 de julho de 2013A centésima edição da disputa mais importante do ciclismo de estrada mundial foi encerrada neste domingo (21/07) na Avenida Champs Elysées, em Paris, com a consagração do britânico Chris Froome, que terminou a Volta da França (Tour de France) com cinco minutos de vantagem sobre a concorrência na contagem total de tempo.
Porém, a dominância do desempenho de Froome, aplaudido especialmente nas etapas de montanha e por causa da velocidade, levantou dúvidas antigas sobre a questão do doping, associada ao Tour da França por causa de escândalos envolvendo grandes nomes da competição, como Lance Armstrong e Jan Ullrich.
Ao jornal britânico Guardian, Froome afirmou que "não seria possível eu alcançar estes resultados se o esporte não tivesse mudado. Essas perguntas [sobre doping] deveriam ser feitas a pessoas que estavam ganhando corridas há cinco, dez anos, quando a questão do doping era mais dominante", disse o atleta. "Mostrar que o esporte mudou é uma espécie de missão pessoal", acrescentou.
Mudança de imagem
Na centésima edição, a Volta da França continuou tentando se livrar da má imagem causada pelos escândalos de doping.
A boa notícia é que os métodos de controle da droga EPO (eritropoetina) estão mais refinados – o que faz com que os investigadores consigam controlar melhor o uso da substância por atletas, mesmo que as quantidades sejam pequenas, segundo explica Mario Thevis, analista do Laboratório de Controle de Doping em Colônia, na Alemanha. "Além disso, depende do momento da inspeção. Se esse momento for bem escolhido, temos muito mais chances de encontrar resquícios nas amostras de urina", diz Thevis.
Equipes no laboratório de Thevis encontraram composições de EPO com Danilo di Luca e Mauro Satambrogio, que participaram do Giro d'Italia, considerada a segunda competição de ciclismo mais importante do mundo depois da Volta da França. Os atletas não acreditaram que a droga seria detectada – o que, segundo especialistas, mostra que hoje em dia apenas atletas incautos fazem uso de EPO.
O que leva à má notícia: vários atletas usam outras substâncias para melhorar o desempenho físico. O mercado oferece preparados que, por um lado, não aumentam o número de glóbulos vermelhos no sangue como a EPO, que melhora o desempenho muscular do atleta porque expande a capacidade de transporte de oxigênio no corpo. Os esportistas também usam outras substâncias capazes de aumentar o poder dos músculos, como as drogas Aicar e GW1516.
Essas duas substâncias também ajudam a emagrecer e, portanto, são especialmente interessantes para atletas que querem reduzir o peso para subir montanhas com mais facilidade, por exemplo.
Aumento dos músculos e perda de gordura
"Estudos com animais e testes clínicos mostram que o GW1516 aumenta o número de mitocôndrias, órgãos celulares responsáveis pela respiração e também conhecidos como 'fábricas de energia' nas células musculares", explica Thevis. "Mas isso não significa um aumento da massa muscular, e sim da eficácia dos músculos. Isso quer dizer que o atleta ganha menos gordura – não importa se ele consome alimentos ricos em gordura ou não", acrescenta o especialista.
No entanto, o GW1516 tem efeitos colaterais muito problemáticos: pode causar tumores no fígado, na bexiga e nos rins. Por isso, a empresa farmacêutica GlaxoSmithKline, por exemplo, encerrou as pesquisas sobre a substância em 2006. Porém, o GW1516 ainda pode ser encontrado no mercado e encomendado pela internet.
Em outubro do ano passado, um patinador de velocidade foi o primeiro atleta a ser pego com GW1516. No início deste ano, meia dúzia de casos envolvendo ciclistas ficaram conhecidos.
Para especialistas, o GW1516 é relativamente fácil de ser detectado por ser uma substância estranha ao corpo. Até os menores vestígios são considerados doping e podem ser punidos.
O caso do Aicar, contudo, é diferente, já que a substância também é produzida pelo organismo humano. "Para provar doping num atleta que usou Aicar, é preciso provar que a droga não foi produzida pelo corpo, mas é uma substância externa que foi adicionada artificialmente", elucida Mario Thevis.
Testes retroativos
Durante a Volta da França de 2009, embalagens vazias de Aicar foram apreendidas no hotel da equipe de corrida de Astana. Naquela época, o americano Lance Armstrong e o espanhol Alberto Contador competiam pela equipe do Cazaquistão.
A descoberta fez com que as autoridades antidoping ficassem mais atentas. Na época, Thevis realizou, junto com uma equipe de Colônia, um estudo sobre a distribuição natural de Aicar no corpo humano e descobriu um limite. Mas o indicador ainda não é usado em controles de doping. A Agência Mundial Antidoping recusou a utilização sob a justificativa de não querer alertar potenciais infratores.
Segundo Thevis, até que haja uma prova legalmente válida contra o Aicar como substância externa ao corpo, "amostras devem ser armazenadas a longo prazo e deve ser feito um teste posterior." Especialistas em ciclismo que desconfiam do uso de Aicar por Chris Froome na 8ª etapa do Tour da França, quando ele deixou todos os concorrentes para trás na subida de Ax-3-Domaines, nos Pireneus (sul da França), teriam de esperar por esses testes retroativos, diz o cientista alemão.
De "normais" a "mutantes"
No dia 6 de julho, Chris Froome cravou o terceiro tempo mais rápido na subida da montanha. Foi apenas alguns segundos mais lento que Lance Armstrong em 2001 e alguns segundos mais rápido que Jan Ullrich, em 2003.
O cientista esportivo francês Antoine Vayer comentou esses números num blog do diário francês Le Monde: apresentou um estudo sobre os melhores desempenhos dos vencedores da Volta da França desde 1982 e criou quatro categorias: "normal" (até 410 watts de potência desenvolvida pelos ciclistas), "suspeito" (entre 410 e 430 watts), "milagroso" (entre 430 e 450 watts) e "mutante" (acima de 450 watts).
O ex-treinador da equipe Festina, que em 1998 protagonizou um escândalo de doping que ficou conhecido pelo mesmo nome do time, observou esses níveis já naquela época. As análises de Vayer mostram um aumento dos watts desenvolvidos pelos ciclistas a partir de meados da década de 90. Até 2006, a curva se normalizou. Em 2009, ano das descobertas de Aicar, Alberto Contador foi autor de um novo pico do desempenho de ciclismo de estrada. Desde então, a curva passou a descer, para subir novamente em 2012 com o então vencedor da Volta da França, Bradley Wiggins.
Segundo a tabela do cronista francês, Chris Froome chegou a um resultado de 446 watts, faltando pouco para alcançar o nível "mutante". Porém, isso não quer dizer necessariamente que Froome usou doping, apontam especialistas que preferem dar ao atleta o benefício da dúvida. A classificação de Antoine Vayer daria apenas uma indicação sobre desempenhos extremos no esporte.