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Vitória pró-aborto na Irlanda surpreende até mesmo ativistas

Gavan Reilly de Dublin / av
27 de maio de 2018

Organizadores da campanha pelo abrandamento da Constituição em relação ao aborto trabalharam duro para vencer referendo, mas nem eles esperavam tamanho sucesso. Tragédia de uma imigrante impulsionou o resultado.

Referendo contou com apoio maciço da juventude irlandesa
Referendo contou com apoio maciço da juventude irlandesaFoto: picture-alliance/AP Photo/P. Morrison

Todos os participantes da campanha pelo "sim" ao aborto esperavam que seu trabalho levasse a causa para além da linha de chegada. Todos percebiam uma vontade pública sólida por mudança – mas também temiam que os votos da Irlanda rural mais pacata, conservadora, pudessem suplantar o "viva e deixe viver" dos moradores urbanos.

Todos esperavam fervorosamente ter feito o suficiente para vencer. Não precisava ser uma vitória esmagadora, bastava a maioria mínima necessária.

Mas ninguém esperava uma vitória tão esmagadora: 66,4% dos irlandeses votaram pela reforma das regras constitucionais que impedem o aborto no país, e 33,6%, contra. Ninguém esperava um voto tão visceral, energético, determinado, emocionado. Ninguém esperava uma margem de vitória de dois para um.

A Oitava Emenda à Constituição irlandesa não foi apenas rescindida: ela foi rasgada em mil pedaços – e com ela, a última crença de que a Irlanda é um país conservador.

Tensão silenciosa na contagem de votos do referendoFoto: Gavan Reilly

Savita, destino que impulsionou a mudança

Após um dia marcado por tensão, em silêncio incrédulo, centenas de voluntários da campanha Together4Yes foram ver a apuração dos votos, a fim de testemunhar o resultado. Nas proximidades, uma multidão menor, da campanha opositora LoveBoth, conferia os votos, concentrada, mas sem convicção.

Seus resultados eram entregues a uma equipe na parte de trás do salão, que agregava os dados. Acima, colado na parede, um retrato de Savita Halappanavar, a mulher cujo trágico destino levou essa campanha de quatro décadas a um ápice.

Em 2012, na cidade portuária de Galway, ela começou a ter um aborto espontâneo, mas teve assistência médica recusada, pois a Constituição irlandesa garante o direito à vida fetal. Ela sofreu por dois dias, durante os quais desenvolveu uma sepsia. Halappanavar morreu quatro dias após sua filha prematura.

Morte de Savita Halappanavar em 2012 deu partida a campanha pela liberalizaçãoFoto: Gavan Reilly

"Pegue nossa mão" em vez de "Pegue um avião"

Entre os observadores da apuração estava Shampa Lahiri, mais emocionada do que muitos. Nascida na Austrália de pais indianos, casada com um dublinense e agora cidadã irlandesa, ela vestia seus mais finos trajes típicos, de sari completo e bindi – o ponto vermelho no meio da testa simbolizando a origem do cosmo –, em homenagem a Savita.

"Todo imigrante vem para cá à procura de uma vida melhor, chegamos aqui para trabalhar duro e ter mais acesso a oportunidades do que em nosso país de origem. Não viemos para cá esperando morrer num hospital público, sob os cuidados de profissionais treinados", disse.

"Independente do lado do debate em que se estivesse neste referendo, todo mundo tem que reconhecer que o que aconteceu com Savita Halappanvar nunca deveria ter acontecido."

O ministro da Saúde, Simon Harris, de 31 anos, rosto público da campanha governamental pelo "sim", foi recebido como um herói no local de apuração.

"Sob a Oitava Emenda, a única coisa que podíamos dizer às mulheres [em crise de gestação] era: 'Pegue um avião ou um barco.' Agora o país está dizendo: 'Não, pegue a nossa mão'", disse à multidão reunida. Atrás dele, uma jornalista chorava em silêncio.

Olhando a realidade nos olhos

No Castelo de Dublin, irrompeu uma festa improvisada. Um pequeno conjunto, Voices for Change, cantava clássicos pop com as letras adaptadas ao referendo. Outro, Angels for Repeal ("anjos pela revogação" – literalmente vestidos de anjos), dançava junto, freneticamente.

Líderes políticos iam chegando, sendo saudados de braços abertos. Quando foi a vez do obstetra Peter Boylan, seu nome foi cantado em coro pelos milhares presentes ao local. Micheál Martin, líder do partido de oposição Fianna Fáil, foi recebido calorosamente: ele apoiou o sim, contra a maioria de seus correligionários republicanos.

Pouco depois das 18h, chegaram os resultados finais. Dos 40 colégios eleitorais da Irlanda, apenas um votou contra, e por margem pequena. Foram depositados 2,15 milhões de votos, mais do que em qualquer outro referendo na história do país; 1,43 milhão, ou 66,4%, foram a favor do "sim".

Como resumiu o primeiro-ministro Leo Varadkar: "Votamos por olhar a realidade nos olhos, e não piscamos."

Shampa Lahiri (dir.) e sua cunhada, a deputada Catherine Ardagh, do Fianna FáilFoto: Gavan Reilly

Uma morte que não foi em vão

À medida que a tardinha virava noite e o Castelo de Dublin vai se esvaziando, uma multidão se reuniu em Portobello, o bairro de artistas da capital. Poucos dias antes, fora estampado num muro o rosto de Savita, com uma única palavra – "Sim" – na frente.

Uma montanha de flores foi crescendo cada vez mais, à medida que os apoiadores deixavam seus tributos em cartões postais colados no muro. Um dizia simplesmente: "Meu sim foi para você."

Cada vez mais flores eram depositadas, e mais gente deixava suas mensagens, pedindo desculpas a uma imigrante de 31 anos que não conheciam. Suas demonstrações de apoio, empatia, solidariedade, cobriu quase todo o muro.

O povo irlandês prestou seu melhor tributo possível a Halappanavar: eles garantiram que sua morte não tenha sido em vão.

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