Avanços territoriais dos curdos no norte da Síria acendem alerta em Ancara e são principal motivo para a operação militar turca no país vizinho. Confira na coluna desta semana.
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Oficialmente, a operação Escudo de Eufrates, executada pela Turquia no norte da Síria, volta-se contra o grupo extremista “Estado Islâmico” (EI), mas o alvo central é outro: os militantes curdos sírios.
Porque, mais do que a formação de um “Estado Islâmico”, nos moldes do que pretende o EI, o que a liderança turca de fato teme é o surgimento de um Estado ou região autônoma curda. Na Síria, essa já tem até nome: Rojava, ou Curdistão Ocidental. Seus pilares são três regiões administrativas, em torno das cidades de Afrin (extremo oeste), Kobane (centro) e Qamishli (no extremo leste).
A consolidação de uma região autônoma curda dentro do território sírio daria novo ânimo às aspirações separatistas dos curdos que vivem no território turco. Essas aspirações são representadas pelo PKK, grupo que se insurgiu em prol da independência curda e hoje luta por mais autonomia dentro da Turquia.
As milícias curdas do YPG (o equivalente sírio do PKK) já conquistaram quase todo o território no norte da Síria, na região de fronteira com a Turquia. A região dominada por elas se estende do extremo leste até o rio Eufrates, além de um enclave em torno de Afrin, no extremo oeste.
Há duas semanas, os curdos sírios avançaram para o lado ocidental do Eufrates com a conquista da cidade de Manbij, até então controlada pelo “Estado Islâmico”. Isso indica que eles poderiam ampliar seu domínio até o extremo oeste da faixa de território no norte da Síria – essa possibilidade foi a senha para a operação Escudo de Eufrates.
O objetivo da Turquia é evitar que os curdos sírios conquistem mais território e expulsá-los de Manjib, uma cidade de população predominantemente árabe. Para isso, a Turquia apoia rebeldes do Exército Livre da Síria. A situação daí resultante é confusa: a Turquia, que é aliada dos Estados Unidos na Otan, apoia o Exército Livre da Síria contra o YPG, que, por sua vez, é apoiado pelos Estados Unidos, que também apoiam o Exército Livre da Síria.
Como se isso não bastasse, a Turquia se aproximou da Rússia, que apoia o regime do presidente sírio, Bashar al-Assad, contra o qual tanto o Exército Livre da Síria quanto o YPG lutam, ambos com o apoio dos Estados Unidos.
Os curdos são um grupo étnico espalhado por quatro países: Turquia, Irã, Iraque e Síria. A região por eles habitada, e que abrange áreas desses quatro países, é historicamente chamada de Curdistão. Unir as quatro partes numa nação é um anseio antigo de grupos nacionalistas curdos, como o PKK e o YPG. Com a guerra civil na Síria e no Iraque – onde os curdos iraquianos já governam de forma autônoma uma região no norte do país – o objetivo de uma nação curda nunca esteve tão próximo de se tornar realidade.
A coluna Zeitgeist oferece informações de fundo com o objetivo de contextualizar temas da atualidade, permitindo ao leitor uma compreensão mais aprofundada das notícias que ele recebe no dia a dia.
"Estado Islâmico": de militância sunita a califado
Origens do grupo jihadista remontam à invasão do Iraque, em 2003. Nascido como oposição ao domínio xiita e inicialmente um braço da Al Qaeda, EI passou por mudanças e virou uma ameaça internacional.
Foto: picture-alliance/AP Photo
A origem do "Estado Islâmico"
A trajetória do "Estado Islâmico" (EI) começou em 2003, com a derrubada do ditador iraquiano Saddam Hussein pelos EUA. O grupo sunita surgiu a partir da união de diversas organizações extremistas, leais ao antigo regime, que lutavam contra a ocupação americana e contra a ascensão dos xiitas ao governo iraquiano.
Foto: picture-alliance/AP Photo
Braço da Al Qaeda
A insurreição se tornou cada vez mais radical, à medida que fundamentalistas islâmicos liderados pelo jordaniano Abu Musab al Zarqawi, fundador da Al Qaeda no Iraque (AQI), infiltraram suas alas. Os militantes liderados por Zarqawi eram tão cruéis que tribos sunitas no Iraque ocidental se voltaram contra eles e se aliaram às forças americanas, no que ficou conhecido como "Despertar Sunita".
Foto: AP
Aparente contenção
Em junho de 2006, as Forças Armadas dos EUA mataram Zarqawi numa ofensiva aérea e ele foi sucedido por Abu Ayyub al-Masri e Abu Omar al-Bagdadi. A AQI mudou de nome para Estado Islâmico do Iraque (EII). No ano seguinte, Washington intensificou sua presença militar no país. Masri e Bagdadi foram mortos em 2010.
Foto: AP
Volta dos jihadistas
Após a retirada das tropas dos EUA do Iraque, efetuada entre junho de 2009 e dezembro de 2011, os jihadistas começaram a se reagrupar, tendo como novo líder Abu Bakr al-Bagdadi, que teria convivido e atuado com Zarqawi no Afeganistão. Ele rebatizou o grupo militante sunita como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL).
Foto: picture alliance/dpa
Ruptura com Al Qaeda
Em 2011, quando a Síria mergulhou na guerra civil, o EIIL atravessou a fronteira para participar da luta contra o presidente Bashar al-Assad. Os jihadistas tentaram se fundir com a Frente Al Nusrah, outro grupo da Síria associado à Al Qaeda. Isso provocou uma ruptura entre o EIIL e a central da Al Qaeda no Paquistão, pois o líder desta, Ayman al-Zawahiri, rejeitou a manobra.
Foto: dapd
Ascensão do "Estado Islâmico"
Apesar do racha com a Al Qaeda, o EIIL fez conquistas significativas na Síria, combatendo tanto as forças de Assad quanto rebeldes moderados. Após estabelecer uma base militar no nordeste do país, lançou uma ofensiva contra o Iraque, tomando sua segunda maior cidade, Mossul, em 10 de junho de 2014. Nesse momento o grupo já havia sido novamente rebatizado, desta vez como "Estado Islâmico".
Foto: picture alliance / AP Photo
Importância de Mossul
A tomada da metrópole iraquiana Mossul foi significativa, tanto do ponto de vista econômico quanto estratégico. Ela é uma importante rota de exportação de petróleo e ponto de convergência dos caminhos para a Síria. Mas a conquista da cidade é vista como apenas uma etapa para os extremistas, que pretenderiam avançar a partir dela.
Foto: Getty Images
Atual abrangência do EI
Além das áreas atingidas pela guerra civil na Síria, o EI avançou continuamente pelo norte e oeste iraquianos, enquanto as forças federais de segurança entravam em colapso. No fim de junho, a organização declarou um "Estado Islâmico" que atravessa a fronteira sírio-iraquiana e tem Abu Bakr al-Bagdadi como "califa".
Foto: Reuters
As leis do "califado"
Abu Bakr al-Bagdadi impôs uma forma implacável da charia, a lei tradicional islâmica, com penas que incluem mutilações e execuções públicas. Membros de minorias religiosas, como cristãos e yazidis, deixaram a região do "califado" após serem colocados diante da opção: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou serem executados. Os xiitas também eram alvo de perseguição.
Foto: Reuters
Guerra contra o patrimônio histórico
O EI destruiu tesouros arqueológicos milenares em cidades como Palmira (foto), na Síria, ou Mossul, Hatra e Nínive, no Iraque. Eles diziam que esculturas antigas entram em contradição com sua interpretação radical dos princípios do Islã. Especialistas afirmam, porém, que o grupo faturou alto no mercado internacional com a venda ilegal de estátuas menores, enquanto as maiores eram destruídas.
Foto: Fotolia/bbbar
Ameaça terrorista
Durante suas ofensivas armadas, o "Estado Islâmico" saqueou centenas de milhões de dólares em dinheiro e ocupou diversos campos petrolíferos no Iraque e na Síria. Seus militantes também se apossaram do armamento militar de fabricação americana das forças governamentais iraquianas, obtendo, assim, poder de fogo adicional.