Zeitgeist: Os militares turcos e defesa do Estado laico
Alexandre Schossler18 de julho de 2016
Líder militar Mustafa Atatürk fundou a Turquia moderna e introduziu reformas que diminuíram influência do islã e tornaram país uma democracia laica. Militares se veem como seus herdeiros.
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A história da moderna República da Turquia começa com a derrota e o consequente fim do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial.
A partição do território do Império Otomano entre os aliados, em outubro de 1918, gerou grande insatisfação entre os turcos otomanos, que se consideravam desfavorecidos.
Essa insatisfação deu origem a um movimento revolucionário nacionalista cujo principal líder era um militar, Mustafa Kemal Atatürk. Em outubro de 1923, em seguida à guerra pela independência, o movimento resultou na proclamação da república.
O primeiro presidente dessa república foi Atatürk. Desde o início, ele implementou uma série de reformas para criar uma democracia moderna e secular, que aproximaram a Turquia do Ocidente. O próprio Atatürk se referia às suas reformas como "europeização" da Turquia.
Atatürk eliminou a sharia como base da legislação, aboliu o califado, proibiu o véu islâmico, adotou o calendário ocidental, introduziu novos códigos civil, penal e comercial, adotou o alfabeto latino no lugar do árabe e declarou o Estado laico, entre várias outras reformas.
Um destaque especial foi dado aos direitos das mulheres, que puderam votar e ser votadas a partir de 1934. A poligamia foi abolida, e homens e mulheres passaram a ter direitos iguais no divórcio e na guarda dos filhos. Também foi garantido o acesso das mulheres à educação, em todos os níveis.
Como Atatürk era um militar, os militares passaram a se ver como guardiães das reformas que resultaram na Turquia moderna. E como Atatürk impôs suas reformas com mão de ferro e é até hoje admirado pela maioria dos turcos, a opção do governo pela força tem grande aceitação dentro da sociedade.
Assim, o país viu quatro golpes militares desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1960, 1971, 1980 e 1997. Em todos eles, os militares invocaram o fundador da república e a defesa das reformas seculares contra as correntes islâmicas.
Esse domínio militar sofreu um duro revés em novembro de 2002, quando o partido islâmico conservador AKP venceu as eleições e conquistou o cargo de primeiro-ministro, que foi ocupado por um dos líderes dos islamistas, o ex-prefeito de Istambul Recep Tayyip Erdogan, atual presidente do país. Desde então, AKP e militares travam uma batalha pelo poder na Turquia, que tem como pano de fundo a tensão entre forças seculares e religiosas.
Com meio milhão de militares, as Forças Armadas turcas são as segundas maiores da Otan, atrás apenas dos Estados Unidos. Pesquisas mostram que a popularidade dos militares está caindo dentro da sociedade turca.
A coluna Zeitgeist oferece informações de fundo com o objetivo de contextualizar temas da atualidade, permitindo ao leitor uma compreensão mais aprofundada das notícias que ele recebe no dia a dia.
Hagia Sophia na disputa das religiões
A Basílica de Santa Sofia, ou Hagia Sophia, em Istambul, é objeto de uma disputa. Nacionalistas turcos querem transformar atual museu em mesquita; enquanto o patriarca dos cristãos ortodoxos quer que volte a ser igreja.
Foto: picture-alliance/Marius Becker
Marco arquitetônico
No ano de 532, o imperador romano Justiniano 1º, que residia em Constantinopla, ordenou a construção de uma imponente igreja, "como não existe desde a época de Adão e nunca existirá novamente". Mais de 10 mil operários trabalharam nela. Dentro de apenas 15 anos, a estrutura externa era inaugurada. Durante um milênio a basílica foi o maior templo do cristianismo.
Foto: imago/blickwinkel
Palco de representação estatal
Consta que Justiniano 1º investiu quase 150 toneladas de ouro na construção da Hagia Sophia ("Sagrada Sabedoria" em grego). Mas em breve ela precisou ser reformada: projetada com uma forma plana demais, sua cúpula desabou durante um terremoto. Em breve a basílica passou a ser utilizada como igreja do Estado. Desde meados do século 7º, quase todos os soberanos bizantinos foram coroados nela.
Foto: Getty Images
De igreja a mesquita
O domínio bizantino sobre Constantinopla teve fim em 1453, quando o sultão otomano Mehmet 2º conquistou a cidade e transformou a Hagia Sophia em mesquita. Cruzes cederam lugar à lua crescente, sinos e altar foram destruídos ou desmontados, mosaicos e pinturas murais foram caiados por cima. Com a construção do primeiro minarete, o prédio sacro ganhou aparência muçulmana também por fora.
Foto: public domain
De mesquita a museu
Em 1934, o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk (foto), transformou em museu a "Ayasofya", como é denominada em turco, na atual metrópole de Istambul. A secularização acarretou minuciosos trabalhos de restauração. Os antigos mosaicos bizantinos foram revelados, porém cuidou-se também para não destruir os posteriores acréscimos muçulmanos.
Foto: AP
Islã e cristianismo lado a lado
A agitada história da Hagia Sophia se apresenta a cada passo aos visitantes atuais: nesta foto, os nomes "Maomé" (esq.) e "Alá" (dir.) ladeiam Nossa Senhora com Jesus no colo (ao fundo). Notáveis são também as 40 janelas da grande cúpula: além de deixar entrar a luz, elas impedem que rachaduras se expandam, destruindo a estrutura cupular.
Foto: Bulent Kilic/AFP/Getty Images
Ícones bizantinos
O mosaico mais imponente da Basílica de Santa Sofia (como também é conhecida no mundo cristão) é uma imagem do século 14, na parede da galeria sul. Mesmo não estando completamente preservado, os rostos ainda estão bem visíveis: no meio aparece Jesus, como senhor do mundo, Maria está à sua esquerda e João, à direita.
Foto: STR/AFP/Getty Images
Proibido rezar
Hoje em dia é proibido orar na Hagia Sophia. Bento 16 também obedeceu essa determinação durante a visita que fez ao local, em 2006, a qual transcorreu sob forte esquema de segurança, devido aos protestos dos nacionalistas contra a presença do papa. Recentemente a associação nacionalista-conservadora Juventude Anatólia reuniu 15 milhões de assinaturas, para que o museu volte a ser mesquita.
Foto: Mustafa Ozer/AFP/Getty Images
Alto valor simbólico
Não faltam construções sacras muçulmanas nas cercanias da Hagia Sophia. Logo ao lado erguem-se os minaretes da Mesquita do Sultão Ahmed, também conhecida como Mesquita Azul (dir.). Os nacionalistas exigem a transformação da basílica em mesquita: ela simbolizaria a tomada de Constantinopla pelos otomanos, constituindo, portanto, um legado islâmico que precisa ser preservado.
Foto: picture-alliance/Arco
Reivindicações ortodoxas
O patriarca de Constantinopla Bartolomeu 1º também reivindica a Hagia Sophia. Há anos o líder honorífico de todos os cristãos ortodoxos apela para que a basílica seja reaberta à liturgia. "A Hagia Sophia foi construída para ser testemunha da fé cristã", argumenta o bispo ortodoxo.
Foto: picture-alliance/dpa
Destino em aberto
O futuro da Hagia Sophia é incerto. Até agora, somente o partido nacionalista MHP reivindica a transformação do museu em mesquita. Dois requerimentos seus já fracassaram no Parlamento. O governo turco não se manifesta sobre essa questão, aparentemente em reação a protestos internacionais. A Unesco também está preocupada: afinal, desde 1985 a Hagia Sophia é Patrimônio Cultural da Humanidade.